ARTIGO: A JUSTIÇA NÃO SE CALARÁ


Diante da apuração de centenas de casos de corrupção, que retiraram dos cofres públicos uma cifra inestimável de dinheiro, que poderia estar sendo aplicada em saúde, educação e segurança pública, a população, cansada de ser lesada, saiu às ruas para pedir um basta.

E não parou por aí, a sociedade se uniu em torno de um projeto para acabar com a impunidade de agentes públicos envolvidos com tal prática.

Foram mais de dois milhões de assinaturas para levar ao Congresso Nacional um projeto de lei com as intituladas “dez medidas contra a corrupção”.

A sensação era de que o Brasil, finalmente, venceria o fantasma da corrupção e poderia ser passado a limpo.

No entanto, este projeto de lei chegou às mãos de um Congresso Nacional, maciçamente, contaminado pelo vírus da corrupção.

Eles, os representantes do povo, ao invés de promoverem os interesses do seu mandatário, acabaram se esquecendo de que “todo o poder emana do povo e, em seu nome, deve ser exercido”. E, para salvarem suas peles, na busca desenfreada pela impunidade, passaram a patrocinar um verdadeiro espetáculo de horrores.

Quem é que se esquece da frase de um certo ex-ministro, em conversa gravada com um delator da Lava-Jato no sentido de que o objetivo era “estancar a sangria”?

E esta sangria, infelizmente, passou a ser estancada, por aqueles que deveriam se limitar a representar o povo.

Primeiramente, tentaram votar uma anistia geral para os corruptos e corruptores.

Não deu certo, a pressão popular continuava forte. Então, na calada da noite, aproveitando-se de uma catástrofe, desfiguraram as medidas contra a corrupção e, por vingança, aprovaram um texto para criminalizar a atuação de Juízes e Promotores de Justiça.

Isso mesmo, pasmem, ao invés de aprovarem um texto de combate à corrupção, tal como desejado pelo dono do poder, o povo, aprovaram outro, em sentido diametralmente oposto, para punir, exatamente, aqueles que se propuseram a combatê-la.

Para tanto, utilizaram do pretexto de que tais agentes públicos não poderiam estar acima da lei.

Mas quem disse que estão?

Primeiramente, é importante salientar que os integrantes do Judiciário e do Ministério Público são escravos da ordem jurídica. O objetivo das duas instituições é o de, justamente, fazer a lei triunfar no Estado Democrático de Direito.

Há um arcabouço jurídico regulamentando a atuação de seus membros, a começar pela Constituição Federal, passando pelas respectivas Leis Orgânicas, Leis de Organização Judiciária. Todos os seus atos estão sujeitos a controle de instâncias superiores. As suas infrações funcionais são apuradas pelas Corregedorias. Há órgãos de controle externo do Judiciário e do Ministério Público (CNJ e CNMP).

Aliás, é imperioso dizer que, quando possuem algum tipo de interesse pessoal acerca de um assunto ou em algum processo, os Juízes e membros do Ministério Público são proibidos por lei de nele atuar. Há causas legais de impedimento e de suspeição de Juízes e Promotores de Justiça. E, se por um acaso, não declararem isso de ofício, as partes possuem instrumentos processuais para afastá-lo das causas.

Isso demonstra, cabalmente, que eles estão sob o império da lei.

Por outro lado, o mesmo não acontece com os políticos. Estes sim em sua maioria estão à margem e acima da lei.

Diz-se isso porque, mesmo tendo os nomes citados em delações premiadas, mesmo sendo investigados e, notoriamente, envolvidos em casos de corrupção e em outros escândalos, ou seja, mesmo quando investidos de evidente interesse pessoal em determinado assunto, eles podem, sem nenhum tipo de constrangimento aparente, participar de um processo legislativo tendente a punir os seus investigadores, acusadores e julgadores.

Ora, se houvesse um mínimo de respeito aos seus mandatários ou aos mais comezinhos valores éticos, tais políticos se absteriam de tomar parte em matérias que lhe afetam diretamente.

Mas, não. Coincidentemente, agora, em que a lei passou atingir a todos indistintamente, inclusive aos ricos e poderosos, os grandes empreiteiros, deputados, senadores, presidentes da república, como deve ocorrer em uma verdadeira democracia, onde ninguém pode se sobrepor à lei, os deputados aprovaram os chamados crimes de responsabilidade dos magistrados e membros do Ministério Público.

Deveriam, sim, dar uma medalha de honra ao mérito aos bravos Magistrados e Promotores que vêm realizando um trabalho incansável, escorreito e impessoal, que já levou centenas de corruptos para a cadeia e resultou na recuperação de milhões de reais aos cofres públicos. No entanto, a homenagem, a gratidão, o reconhecimento foi a criação de uma série de crimes para lhes punir.

E o que passa a ser criminalizado? O que é o abuso de autoridade, segundo o projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados?

Tudo.

Os tipos são totalmente abertos.

Por exemplo, quando se fala que: “constitui crime de abuso de autoridade dos magistrados: proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”, qualquer tipo de comportamento pode configurar a infração penal, tudo a depender das referências do intérprete.

Pode ser que os mais conservadores, para ilustrar a ideia, entendam que o fato de uma Juíza usar calça comprida ou um decote um pouco mais ousado contrarie o decoro de suas funções. Para essa pessoa, a Magistrada estaria cometendo, pasmem, o crime de abuso de autoridade.

Da mesma forma, o magistrado que expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério, comete abuso de autoridade.

Para exemplificar, se este subscritor publicasse em sua página social que, respeitosamente, discorda do posicionamento do STF acerca do aborto, cometeria crime de abuso de autoridade.

Em relação ao Ministério Público disposições semelhantes são encontradas no texto.

É explicita a intenção de intimidar e calar Juízes e Promotores.

Por isso, a sociedade precisa estar atenta. O Poder Judiciário e o Ministério Público precisam mais do que nunca do apoio da população. Caso não haja o engajamento do cidadão de bem nesta causa, se não houver um enorme e duradouro barulho democrático, os políticos, que se usurparam dos poderes que lhe foram confiados pelo povo, enterrarão a oportunidade de passarmos o nosso país a limpo, de extirpar dele o câncer da corrupção.

Para isso, precisamos de um Poder Judiciário independente, de um Ministério Público forte. Parafraseando a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia, “Juiz sem independência não é juiz, é carimbador de despacho, segundo interesses particulares e não garante direitos fundamentais”.

A Justiça não se calará.

  • O juíz de direito, Dr. Henrique Alves Correa Iatarola, nasceu em Santa Bárbara D Oeste (SP), e iniciou a carreira na magistratura, em 2007. Atualmente, é o titular da 1 Vara Criminal de Botucatu (SP).


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Publicado em: 2 de dezembro de 2016 Autor: keller stocco Categoria: CIDADES

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